Em defesa do Diário



O diário, enquanto documento escrito, é antigo. Muitas vezes apareceu associado a um outro género literário: as memórias. Porém, ao longo da história literária, o diário ganha autonomia. Até ao século XIX teve, tendencialmente, objectivos utilitários: servia como uma espécie de confessionário para quem escrevia; o alívio do sofrimento, a preservação da personalidade, a autoformação, a catarse está presente nos textos. Documentos pessoais que constituem o resultado de um circuito fechado de comunicação, e, na grande maioria dos casos, é posta de lado a hipótese desses textos virem a ser lidos por outrem e muito menos virem a ser publicados. A partir do século XIX, começa a ser registado um crescente interesse por este género de escrita por parte do público; autores de renome começam a publicar os seus diários. Atendendo às origens e à designação, o diário apresenta-se, hoje, como uma escrita paradoxal: concilia a divulgação com o intimismo. O contrato de leitura que hoje envolve o diário está relacionado com o nome próprio como nome de autor. O texto é caracterizado pela identidade do autor, do narrador e da personagem; a pessoa gramatical reenvia para um sujeito de enunciação que, por sua vez, remete para um sujeito autoral, ou seja, o nome inscrito na capa. É de salientar que o diário é lido como texto para que cheguemos ao homem, é uma espécie de testemunho pessoal para que cheguemos ao território do autor. Assim, e de uma forma quase incontornável, o leitor envolve-se num diálogo de si consigo próprio. Deste modo, o destinatário explícito do diário deixa de ser o autor para ser o outro, ao contrário daquilo que sucedia antes das publicações dos primeiros diários, quando existia uma auto-análise por parte do escriba em circuito fechado. Esse outro tanto pode ser o outro textual, como o outro transcendente, ou ainda o outro imanente. Nessa medida, e embora mantendo a sua própria peculiaridade enquanto género, o diário tem vindo a aproximar-se do mesmo esquema de comunicação que geralmente se atribui à poesia e ao romance. Mas, ao contrário da prosa de ficção que se tem desenvolvido em torno de um mundo que de algum modo é forçada a representar, o texto diarístico desenvolve-se fora dos territórios muitas vezes definidos como pertencentes à literatura. Não existem nestes textos características de efabulação romanesca, nem preocupações de urdidura narrativa; existe sim, uma preocupação de restituir uma realidade em termos de sucessão ou localização, não colocando de lado, totalmente, características da narrativa e do romance. É importante referir que o diário surge, geralmente, da parte de autores que são essencialmente ficcionistas. Há como que um objectivo de abandonar por momentos a ficção, como se os autores desejassem resolver o seu tempo de escrita sem a enorme responsabilidade inerente à criação artística. O escritor justifica-se, desculpa-se, faz considerações sobre a facilidade de escrita que este registo de comunicação lhe permite, alegando que o aproxima mais do leitor. Assim, o diário é, entre os géneros literários, o mais delicado e talvez maldito. Tem sido mantido pela crítica num relativo silêncio, apesar de, por vezes, representar parte significativa da obra total dos autores, mesmo que escassamente divulgada.



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