Da vida de todos os dias e não só



Escrever sobre estas Estórias Domésticas não é tarefa fácil, devido à dificuldade em enquadrá-las/inseri-las num determinado género: prosa, poesia, ensaio, confissão, memórias? De facto, o lugar apontado pelo autor parece o mais indicado: «um lugar entre as prosas e os poemas. Um lugar de problemas.». Dividido em quatro partes (Estes livros sem interesse, Mesas privadas e de vítima, Estórias domésticas e As favas contadas), o livro de Henrique Manuel Bento Fialho encerra em si uma escrita límpida, sem grandes maneirismos ou artefactos, o que a torna simples, directa e, acima de tudo, perturbante. Na primeira parte (Estes livros sem interesse) encontramos memórias da infância, repletas dessa magia que só a infância é capaz de nos dar, no entanto carregadas de algum pessimismo (característica unificadora de todo o livro, excepção feita à parte intitulada Estórias domésticas): «Quando íamos ao rosmaninho não pensávamos em feiticeiras queimadas, mas no próprio santo. Tudo mudou quando, ao saltar a fogueira, o Cachaça resvalou para a brasa e incendiou-se. Vi-lhe os dedos queimarem-se, as unhas derreterem-se como se fossem os cotos que iluminam o prazo da nossa esperança» (p.28). A segunda parte (Mesas privadas e de vítima), remete o leitor para «as memórias da traficância», onde o autor faz uso de uma linguagem poética forte, marcada por imagens desconcertantes: «Entram no bar como se fossem pedaços de carne a dar à boca» (p.62); «A mão esquerda mergulhada nas entranhas» (p.67); «Tinha a coluna decepada pelo vento» (p.70); «Crianças feitas de madrugada. Estátuas vivas. Junkies deitados nos bancos do jardim, marcados por facas espetadas no coração da pedra.» (p.75); «Vou querer um poema sem gelo. Que me bata de estalo o seu efeito espiralado» (p.82). O eu é sem dúvida o elemento principal destes pequenos poemas em prosa, mas não um eu indulgente para consigo, antes o oposto: consciente da sua insuficiência, que não procura o perdão, nem procura dá-lo. Na terceira parte do livro (Estórias domésticas), o autor abre as portas da sua casa, partilhando com o leitor as “crises” existenciais dos objectos que a habitam. São pequenas estórias, micro-narrativas, que se assemelham muitas vezes a aforismos e que têm em comum a ternura, o humor, a ironia: «Sempre que abrimos as janelas, as portas constipam-se» (p.100); «A filosofia da piaçaba: não se pode tomar banho duas vezes na mesma merda.» (p.102); «Quando se olhou ao espelho, o espelho ficou confuso. Não sabia se o principio de todas as coisas seria ele próprio ou o infinito.» (p.115); «A panela de pressão fez um bico ao fogão. Não satisfeito, o fogão atirou-se à chaleira. A colher de pau, invejosa, fez-se aos tachos e acusou o fogão de pedofilia. O mais certo é o processo vir a prescrever por falta de gás.» (p.125). A última parte (As favas contadas), gira em torno de uma personagem: Quitéria: «uma cigana aqui do bairro» (p.155). Quitéria é alguém que diz tudo o que tem a dizer, que faz tudo o que tem a fazer, sem olhar a normas, a convenções, a todas essas coisas que muitas vezes condicionam a nossa verdadeira maneira de agir. Quitéria é quem nós queremos ser (pelo menos alguns) e cuja falta de coragem impede de o ser. Quitéria é todos nós, só que livre: «Vi Quitéria na Segurança Social. Fui lá pagar dívidas de um futuro que não me aguarda. Voltei a vê-la, calada, na Junta de freguesia. Estava quieta, parada, indulgente e conformada com o novo guiché de comando electrónico. Mas, assim que soou o pim, Quitéria levantou-se, alçou a perna e deu-lhes com um pum! de sufocar azevinhos do pinhal. Fiquei-lhe grato pelo gesto, tudo o que eu desejaria ter feito e por quietude, indulgência, conformismo, educação, jamais farei.» (p.162). É connosco que ela nos confronta. É esta a lição que Quitéria nos ensina. São estas as estórias que Henrique Manuel Bento Fialho nos dá a conhecer.

Henrique Manuel Bento Fialho, Estórias Domésticas, Entroncamento: OVNI, 1ª edição, 2006, 169 pp.

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