A avidez dos lobisomens | António Santos

in Avante!, 09-03-2023

Em O Ca­pital, es­crito no lon­gínquo sé­culo XIX, Marx con­de­nava assim o ape­tite do ca­pi­ta­lismo pelo tra­balho in­fantil: «no seu im­pulso des­me­di­da­mente cego, na sua avidez de lo­bi­somem por so­bre­tra­balho, o ca­pital der­ruba as bar­reiras má­ximas do dia de tra­balho, não só as mo­rais mas também as pu­ra­mente fí­sicas. Ele usurpa o tempo para cres­ci­mento, de­sen­vol­vi­mento e sau­dável con­ser­vação do corpo. Rouba o tempo re­que­rido para o con­sumo de ar livre e luz solar.» Dois sé­culos mais tarde, o tra­balho in­fantil re­gressa ao país ca­pi­ta­lista mais de­sen­vol­vido do mundo como uma do­ença cró­nica, e de nas­cença.
Se­gundo o De­par­ta­mento do Tra­balho da Casa Branca, em 2022 o nú­mero de cri­anças a tra­ba­lhar ile­gal­mente au­mentou 37 por cento. Se olharmos para a úl­tima dé­cada, esse nú­mero ul­tra­passa os 140 por cento. No final de Fe­ve­reiro, o New York Times dava à es­tampa uma peça in­ti­tu­lada «So­zi­nhas e Ex­plo­radas, Cri­anças Mi­grantes em Tra­ba­lhos Bru­tais nos EUA», que de­nun­ciava a es­cala ater­ra­dora do crime contra as cri­anças: cen­tenas de mi­lhares delas, muitas com menos de 12 anos, sem fa­mília, a tra­ba­lhar como adultos até 14 horas por dia, im­pe­didas de brincar, de aprender, de serem cri­anças, para en­gor­darem as es­ta­tís­ticas do tra­balho in­fantil e os lu­cros dos lo­bi­so­mens que detêm os meios de pro­dução.
De costa a costa, uma maré le­gis­la­tiva per­corre os con­gressos es­ta­duais dos EUA, eli­mi­nando as leis que pro­te­giam as cri­anças do tra­balho in­fantil. No Wis­consin subs­ti­tuiu-se «tra­balho in­fantil» por «tra­balho feito por me­nores»; em Nova Hampshire, per­mitiu-se que cri­anças de 14 anos sirvam be­bidas al­coó­licas e tra­ba­lhem até 35 horas por se­mana; no Se­nado do Iowa, no pas­sado dia 1, foi apro­vado na ge­ne­ra­li­dade o pro­jecto de lei 167 que per­mite que cri­anças a partir dos 14 anos possam de­sem­pe­nhar tra­ba­lhos pe­ri­gosos, desde que como «apren­dizes». Entre as in­dús­trias abertas à apren­di­zagem das cri­anças do Iowa, en­con­tram-se «ma­ta­douros, pro­ces­sa­mento de carne, minas, serras cir­cu­lares, de­mo­li­ções» etc. Como se não bas­tasse, o SF167 «isenta os ne­gó­cios de quais­quer res­pon­sa­bi­li­dades ju­di­ciais caso o aprendiz adoeça, sofra um aci­dente ou morra de­vido à ne­gli­gência do em­pre­gador». De­fen­dendo o pro­jecto de lei, Jason Schultz, do Par­tido Re­pu­bli­cano, ga­rantiu que a nova le­gis­lação «vai criar uma ge­ração de lí­deres ha­bi­li­dosos».
Da in­dús­tria au­to­móvel à in­dús­tria ali­mentar, pas­sando pela cons­trução e pela ho­te­laria, o tra­balho in­fantil deixou de ser ex­cepção nos EUA. Já não é uma me­mória nem uma visão do «ter­ceiro mundo. Já não se es­conde. É om­ni­pre­sente e torna-se legal. Na sua cró­nica se­manal no Mo­ville Re­cord, Schulz sin­te­ti­zava assim a causa do tra­balho in­fantil: «se o fu­turo per­tence às cri­anças não lhes po­demos negar o di­reito de cons­truí-lo no pre­sente. Não nos po­demos es­quecer que este mundo é muito mais com­pe­ti­tivo do que há 50 anos». Pois é, mas não mais do que há 200, di­ríamos nós, que sa­bemos que outro mundo tem mesmo de ser pos­sível.

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