Um poema de Miyó Vestrini


A Maioria



É certo que em Abril os lírios apodrecem,
o trigo cresce
e mancham-se de sangue as camisas de noite infantis.
Nascemos todos em Abril:
em crianças,
aprendemos que obedecer nos traria paz.
Adolescentes,
descobrimos o valor da rendição condicionada.
Afinal de contas,
não morremos por tentar.
Somos agora submissos e secretos,
gordos de olhos arregalados
e macias carnes.
Preparamos palavras suculentas
que passam pelo picador da carne,
e um cão, bem-criado,
espera para as engolir.
Desafiantes colhidos de fresco,
desgraçados a destempo
e solenemente imberbes,
ocupamos o lugar cimeiro nas encostas.
Somos aquilo a que chamam
a maioria.



em Poucas Virtudes/Cidadão Valente, tradução e prefácio de Miguel Cardoso, Lisboa: Barco Bêbado, 2022, p. 104.

1 comentário:

Gato Aurélio disse...

áutch...
este doeu.
tendo falecido em 1991, fiquei curiosa em saber em que ano escreveu este poema que, para mim, podia ter sido escrito hoje...