Lavandaria


I felt like destroying something beautiful.
Tyler Durden


Sou o que sou
serei sempre aquilo que apenas sou
Eu: que gostava de ser tudo
não tenho em mim um único sonho do mundo

A janela do meu quarto
neste prédio que ninguém sabe onde é
(e se soubessem, ficariam apenas a saber)
dá para uma rua sem mistério e vazia de gente
para uma rua sem um único pensamento digno de nota
de tão real — imensamente real — e tão desconhecida como verdadeira
sem mistério sem coisas sem pedras e seres mas com comboios a horas certas
Esta rua limite duma cidade onde se fecham miradouros
com a morte a conduzir o destino de nada pela humidade de tudo

Não tenho tempo para a derrota mesmo sabendo a verdade
porque tudo me é demasiado neste país de vencedores
E tivesse eu apenas a coragem necessária e deste décimo sexto andar frente
onde apenas o vento agita o dia e a memória dentro da minha cabeça
a estourar de sentidos e ideias e disso tudo
e mandava os meus nervos ranger para outro lado
e despedia os meus ossos

Não há espanto que me valha
pois os meus olhos vêem o mundo
que é essa coisa real — imensamente real —
que impede até o sonho de viver por dentro

Ninguém me disse que podia falhar
e ninguém me disse que podia vencer
Tudo isso aprendi duma outra janela
que dava para uma outra rua
donde via montanhas e nada de campos
Daí a minha vontade de sul e de planura
de gente que não fosse aquela que ali vivia
Dessa outra janela pensei o que neste momento aqui penso

Sei apenas o que fui sou e serei
Sei o que penso sem pensar em muito
e isso é tudo e muito mais do que aquilo que muitos pensam
Não procuro ser mais do que ninguém
pois é suficiente ser aquilo que fui sou e serei
E mesmo quando alguém um dia de mim se esqueça
é suficiente saber agora que fui sou e serei
E mesmo se em mim ninguém crê
é suficiente agora sentir a certeza do sol na minha cara
logo eu que não tenho em mim qualquer certeza
nem em mim nem em ninguém
Mas não deixa de ser verdade que pelo mundo
há quem viva cheio de certezas
Quantas dúvidas têm eles?
Sim, quantas?
E se sim: quais?
As minhas são suficientes para todos
aqueles que as não têm no mundo
e que no mundo vivem a pensar que são reis
e não passam de escravos desse pensamento
Tenho tentado deixar de pensar
Tenho tentado seguir o exemplo da maioria
Tenho em mim também a vontade de ser rei
Mas sou apenas aquilo que fui sou e serei
ainda que me demore em pensamentos
que em mim estavam por pensar
continuo a ser este que aqui a vós se apresenta:
alguém que queria ter mais qualidades
alguém que nunca esperou que a porta lhe fosse aberta
alguém que nunca soube uma canção de cor
alguém que esqueceu deus antes que deus se lembrasse
alguém que sabe ser ninguém
A certeza do sol na minha cara
não sei se é certeza na cara dos outros
porque cada um cria o seu próprio sol
a sua própria chuva e vento no cabelo
e tudo o resto é aquilo que resta a cada um inventar
Afinal somos todos escravos
sempre à espera de alguém que conquiste
por nós o mundo e quando ele é
finalmente conquistado
reparamos que só nos restam despojos
Saímos de casa e é isso a vida inteira:
indícios de ouro mas apenas poeira

(“Come as batatas, rapaz”
— dizia-me um tio — “Come as batatas!”
assustado por ver a carne desaparecer do prato
“Olha que as batatas são os frutos da terra!
Come as batatas, rapaz!” e tentava talvez ensinar
com a mesma verdade com que eu comia
que o mundo se quer nesse equilíbrio
de batatas e carne no prato)

E aquilo que apenas me fica deste dia
é uma vontade de luz a entrar pelas frinchas dos estores
mais o silêncio impossível do prédio a esta hora
Porque só assim conseguirei deixar o mundo
lá fora entre a penumbra das árvores da avenida
e a roupa lavada no estendal enquanto
eu em casa fico muito bem sem camisa

(Tu que existes para lá de todos estes versos
que me fazes sentir impossivelmente vivo
Tu que não és princesa nem deusa nem tágide
ensina-me a ser pós-moderno como os meus pares
a praticar a intertextualidade sem cair na facilidade
do plágio decotado com mamas demasiado à mostra
Ensina-me o decoro a prudência e o tino
como no tempo dos meus e dos teus pais
Porque isto de ser pós-moderno — não concebo
bem como — talvez seja uma fuga para a frente
talvez seja a indigência a que podemos aspirar
E é nesta altura que o meu coração
bate um pouco mais rápido e tomo mais
um comprimido como manda a cardiologista
Eis sem vontade nem capacidade de invocar
todos os poetas antes de mim: Crane Whitman
Rimbaud Lautréamont: onde estais
que não vos encontro em nada!?
Resta-me a única janela do meu quarto
e a rua em todo o seu esplendor e agonia
Nela não há uma única loja
Nela só carros estacionados
Nela pouca gente
Nela só cães atrás de muros
E tudo isto afinal me agrada
E tudo isto me é normal)

Mas verdade seja dita
até agora e apesar de tudo: confesso que vivi
e estaria a mentir se dissesse o contrário
E penso: quantos mentirosos por aí há
que nunca viveram de verdade que nunca sofreram de verdade
e escrevem que viveram e sofreram de verdade
e pior ainda: que vivem e sofrem de verdade

Nunca fiz de mim aquilo que  sempre
soube que deveria fazer de mim
O único fato que vesti está ali pendurado
Aqueles que me conhecem deixaram de me avisar
e alguns até se afastaram
e nunca mais os vi
Envelheço demasiado rápido
o que lhe tira toda e qualquer dignidade
Cabelos brancos são muitos mas só na barba
Penso nas vezes em que quis desistir
mas faltou-me a coragem e o jeito
mais essa maneira de ser maior
E escrevo isto para não me esquecer

Só queria que a minha vida fosse
algo mais do que apenas a minha vida
É mais fácil para mim encontrar-me
na vida dos outros quando passeio
pelas ruas e olho para dentro das casas
imaginando-me ser eu a viver lá

Saio de casa e um vizinho olha-me
com um olhar inquisidor e com esse desconforto na pele
entro no elevador e marco o zero
São quarenta e dois segundos até ao rés-do-chão
(um dia dei-me ao trabalho de os contar)
Há um vento forte na rua e sinto a boca seca
devido ao olhar inquisidor do vizinho
Sei que todos nós um dia morreremos
que o mundo para todos acabará
como se nenhum de nós por cá
tivesse um dia passado e vivido
porque nem todos passam por cá e vivem
nem todos tentam o impossível e o real
nem todos procuram o mistério
nem todos isto ou aquilo
nem todos

Mais um homem entra na Lavandaria (virá lavar
apenas roupa branca?) e traz consigo um saco maior
do que o meu e sinto-me pequeno insignificante
E é isso mesmo que irei um dia escrever

Coloco a moeda na máquina e espero
que tudo funcione na sua ordem perfeita
como toda a ordem deve ser
Por momentos sinto-me competente
livre de toda e qualquer dúvida
A máquina começa a funcionar

Sirvo-me dum café e sento-me numa cadeira
A máquina no seu ritmo compassado
Enquanto isso o homem ao meu lado

procura moedas na algibeira
Parece feliz
Visto daqui — sim — parece feliz

Saio da  Lavandaria (roupa lavada e seca e dobrada)
O sol bate-me leve na cara
(e não há nisso qualquer metafísica)
Na rua o vento forte de todos os dias
Vejo as horas e penso no homem na Lavandaria
e como sorriu quando lhe disse resto de bom dia

7 comentários:

Gato Aurélio disse...

"[...]À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.[...]"

:-)

manuel a. domingos disse...

Exactamente.
Uma pequena heresia da minha parte.

Gato Aurélio disse...

heresia... não acho.
Variações sobre o tema, sim...
porque há mais sítios para além das tabacarias.
.
.
.
.
p.s. ...e sim, a luz já é demasiada e os olhos já gritam.

Gato Aurélio disse...

O Intercidades está a funcionar demasiado bem...se não... acho que teria assistido à estreia com os vivos e com as cores.
...e perceberam que há mais sítios para além das tabacarias?

manuel a. domingos disse...

Bom dia.

Sim, perceberam. E tive boas reacções ao poema. Fiquei contente.

Gato Aurélio disse...

então que seja um bom dia seguinte!

manuel a. domingos disse...

É quase fim-de-semana. Sempre bom dia.