Um poema de Miguel Martins


Às vezes, preciso ler dias seguidos sem atentar ao mundo,
deambular por tempos e lugares e ser um corpo outro,
não o meu. Preciso de mares revoltos na bonança
ou de uma breve lagoa polinésia
quando por aqui estala um pandemónio
e já não há quem ature esta algazarra.
Um refúgio, é certo, uma fraqueza por postais ilustrados,
cores retocadas, trajes tradicionais, a fala rija e doce
de um boieiro bretão.

Acompanha-me agora —
não te levo pela mão, por falta de fortuna,
mas peço que me embales nessa ladainha
que chega da janela ao bateres os tapetes.
Também tu viajas, sem precisares de livros,
talvez para o mesmo sítio, talvez também comigo.
Limpas-me o pensamento, ofereces-me a modorra,
o bem mais precioso nestes dias febris.

Também tu, meu amor, nasceste no exílio.


em O Caçador Esquimó, Lisboa: Fahrenheit 451, 2017, p. 14.

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