Um poema de Elisabete Marques


Náufrago


Perdido estás em terra firme.
Poderás inventar casa, hortos,
rostos, imaginar biografias,
os quilómetros bem estudados
— de onde vens, para onde vais —,
poderás riscar o tempo
nas paredes, a soma completa, traço a traço,
mas nada atenua a estranheza: aqui estás,
com susto, suor, coxas, saliva; não sabes,
porém, tomar das tuas fibras o tremor.

Caídos nós, como a água na folha fresca
e, no tanque, os peixes variáveis,
— faltar-nos-á talvez a lâmina, o golpe da ternura.
Esperemos calmos, sobre o areal; nunca se pressagia
o que a vaga trará consigo de manhã.


em Apartamentos (AAVV.), Lisboa: Língua Morta, 2016, p. 25

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