Um poema de Diego Doncel


Ainda tenho realidade


Este silêncio sabe que vivo
noutro mundo, que sou feito de esquecimento
tal como uma sombra que abandonou
o tempo. Que ainda tenho realidade,
embora seja esta de me sonhar enquanto fruto
de um mundo povoado de fantasmas
onde a vida se inventa.

Olho para mim e ainda não me reconheço,
e mal vejo o nevoeiro
que lavra a dúvida de quem sou.
Não sei se principio a ser ou se já morri.

Ouço lá longe, por cima das antenas parabólicas
e da maquilhagem barata das nuvens,
a voz da tarde vir do céu
como de um bar sórdido onde tivesse bebido,
lançar outra vez escarros de tempo para dentro do meu sonho
enquanto blasfema.

Eu, porém, encontro a sua luz,
essa luz neurasténica que alumia os regatos
da vida com as suas ficções velhas e os seus calafrios,
e ouço assoprar os sapos da morte,
à beira desses tanques com lixos
no fundo, como náufragos de uma qualquer metafísica.
Um náufrago da minha própria alma sou eu,
com um tempo possível e alguma possibilidade
de vida sem saber para quê.
Ah, talvez seja para arrepender-me
de ter nascido enquanto for este o espectáculo.

Não sei como nem onde tomei consciência
de mim, deste animal que escuta o vento,
como se fosse uma aparição,
com os seus ruge-ruge engomados no nevoeiro
e que descobre, neste parque suburbano,
a música obscena do mundo desdobrar a sua harmonia
de bichos e de insectos aqui no coração.
Ah, que vês seres que fazem zumbidos
de um mais além absurdo quando olham para o céu,
que sente como a alta tecnologia das dores
berra nas pradarias da consciência
os misereres da sua própria infelicidade,
que escuta apenas o ruído e o mistério dos seus sentimentos
neste repetir-se dos dias.
Ah, e então, onde posso encontrar
uma razão humilde para permanecer aqui
qual a imagem de uma espelho que a vida
vai desfigurando? E em que lugar
da vida posso tomar consciência de quem sou?

Eu não sou eu, sou aquele.
Aquele que não sabe onde é possível procurar
uma prece para se redimir de si próprio,
enquanto ganha as formas indecisas do nevoeiro
por entre estas matérias puras vegetais em estado de equilíbrio,
por entre estes planos de urbanistas que criam
espaços paradisíacos para fazer amor
e para se drogar ao mesmo tempo que a dúvida
vais desfigurando tudo.
Eu não sou eu, sou aquele: o estrangeiro
que existe apenas para o faro dos cães.
Esse que sabe que nenhum deus pôde nunca
sussurrar-lhe uma palavra de consolação,
deuses que de longe olhavam alucinados
pelas suas próprias farmacologias celestes
e que mudavam de canal
quando se fartavam.


em Em Nenhum Paraíso, tradução e introdução de Joaquim Manuel Magalhães, Lisboa: Averno, 2007, pp. 25-29.

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