Nota de leitura (6)


Não sei se vai chover ou não.
Nem se a greve entupirá as ruas.
Haverá comboios? Autocarros?
Barulho no andar de cima?

Certo, só o chá das sete.
Que pode ser às oito ou nove.
Mas é sempre chá e quente.
Feito num bule de porcelana fina.

Dias há que o seu aroma fresco
me transmite algum sossego.
Mais tranquilo e desperto
começo então a escrever.

Umas vezes com rigor.
Outras vezes nem por isso.
Depende muito do chá
e da forma como o tomo.


António Silva Graça
Invenção na Sombra
Relógio D'Água, 1989, p. 14.


O argumento mais utilizado por alguns daqueles que defendem uma forma poética mais ligada à palavra, enquanto valor intrínseco e quase inalienável, é o do risco. Isto é: o risco que o poeta corre ao procurar na palavra aquele dom de salvar pelo mais alto. São uma espécie de devedores de Eugénio de Castro e dos seus Oaristos. Para isso, alguns, recorrem à metáfora como uma espécie de tábua de salvação, ou então ao uso de vocábulos mirabolantes, quando na realidade esse uso apenas mascara a sua incapacidade de verdadeiramente arriscar, demonstrando, apenas, uma excelente proficiência no uso do dicionário.
E depois há os outros, aqueles que, na minha opinião (repito: minha opinião), realmente arriscam. Este poema de António Silva Graça é, quanto a mim, um bom exemplo. Nele o poeta arrisca de verdade, pois nada há de mais arriscado do que procurar no quotidiano (e não no dicionário) o material necessário para transfigurar esse próprio quotidiano, procurando o poético nas coisas mais simples do dia-a-dia e da vida. Uma situação banal pode estar carregada de poesia. E neste caso é inegável que está.

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