Pela manhã, ouço a crónica de Rui
Cardoso Martins na Antena 1. Refere-se ao Deus do ministro que andou pelo All
Garve a estrear galochas. Ouço-o com atenção e pergunto-me que mundo é este
onde tudo cabe como se fosse irreal? Salgado triplica pensão para 90 mil euros
por mês, diz a notícia. Há dias, na mesma Antena 1, alguém falava dos
banqueiros condenados na Islândia. Condenados a prisão. O que é verdade? Em que
devemos acreditar? Serão ambas as notícias verdadeiras? Neste mundo onde tudo é
gigantesco, hiperbólico, fantástico, mega, híper, super, um site oferece a
maior colecção de partituras do mundo, a Escócia vai albergar o maior parque
eólico marinho do mundo, ser mãe é a profissão mais exigente do mundo… Sinto
falta de coisas pequenas e breves, quotidianas, efémeras, sinto falta de coisas
do meu tamanho, coisas que as minhas mãos possam realizar. O Parlamento Europeu
suspendeu dois eurodeputados, um polaco e outro italiano, por terem discursos
neonazis. Por serem pequenos, muito pequenos, humanamente ínfimos. Alguém
comenta: «este senhor devia ser enrabado por uma guilhotina». Apesar da
surrealidade imagética (não estou a ver como pode uma guilhotina enrabar
alguém), quem suspende o comentador pelos seus comentários violentos? Isto
passa-se diariamente e é como se nada fosse, as pessoas mergulham neste mundo
agónico de opiniões à distância, de acusações à distância, protegidas pela
distância, arrogam-se no direito de proferir barbaridades contra barbaridades
como se estivessem a exibir as partes em local público. Tanta estupidez enoja,
tanta demagogia, tanto populismo, tanto desrespeito admitido e promovido e
inimputável. Pela imprensa de hoje, este título dissemina-se como uma praga imbatível: «refugiados terão
médico de família e não vão pagar taxas moderadoras». Adivinham-se os
comentários. Portugal é um país estranho num mundo estranho. Salgado,
alegadamente um dos maiores criminosos que este país conheceu, triplica a
pensão e muita gente continua a olhá-lo com inexplicável complacência. Os
refugiados terão médico de família e é o fim de um país, não pagam taxas
moderadoras e é o fim do mundo. Repare-se no contraste: estarei a ser moralista
se denunciar o tom populista, interesseiro, demagógico, sensacionalista do
título sobre os refugiados? Estarei a ser moralista se denunciar o mesmo tom na
notícia sobre Salgado? Estarei a ser ingénuo se esperar um pouco mais dos
jornalistas que pensam títulos do que espero de uma actriz pornográfica? Talvez
a imprensa se limite a reproduzir a estranheza do mundo, do mesmo mundo que
aceita a convivência de uma rapariga a ser lapidada e de uma família feliz no
seu novo Touran. A imagem ao alto é de dois vídeos, um noticioso, outro
publicitário, passíveis de serem observados ao mesmo tempo na mesma página
on-line de um jornal português. Contraste chocante? Não sei. Sugiro que tentem
descobrir qual deles é o publicitário, qual deles é o noticioso. Depois fechem
os olhos e imaginem que são refugiados a atravessar o Mediterrâneo. Talvez
consigam morrer afogados.
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