Um poema de J. H. Santos Barros


Para o duplo que se segue

A vida do fantasma é asseada.
Fosse ela de-vida à morte que circula,
metáfora célere, oblação interrompida
e aqui estaria o êxtase aceitável, a razão
assoprada pelo rumor do coração. O orgasmo
bem ocrídico, da terra cobrindo as zonas
assombradas. Ao invés: falta-lhe a iniciação
das coisas mais simples, sob lençóis e águas
subindo e descendo, ritos que não trazem
verdades limpas da contaminação das palavras.
Mas a vida do fantasma ― paradoxo intolerável 
É cópia ilegível. Flash disparado no vazio
quando se revela cheio de pontos negros.
Técnicas avançadas de exposição dão-lhe um ar
bem limpo, sem contudo eliminarem
os suores de ascese, da passagem do papel
pela estreita via da dupla guilhotina.
«É então a morte?» exclamas, sem considerares
a impossibilidade de salvá-la da podridão.
E o fantasma come e bebe deus, sem cerimónias.
Castra-se, eventualmente, é certo. É peregrino
de regiões estéreis, esvoaça à procura de anjos,
tem comércio íntimo com a materialidade das crianças.,
à magia negra opõe o Bem branco.
Mas nada, nada, lhe sobra desse tanto trabalho.
Comove-se na angústia de ateus e crentes,
pedreiros-livres, adventistas, poetas,
sábios de toda a espécie. Mas quem o fará
descer à previsão meteorológica,
ao alcance do radar, à visão periscópica?

de S. Mateus, outros lugares e nomes (1981) inserido em Sempre disse tais coisas esperançado na vulcanologia – 12 poetas dos Açores, organização e notas de Emanuel Jorge Botelho, posfácio de Luís de Miranda Rocha, s/l: Gota de Água/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p.126.