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Jivago e a vida privada. Pensar a vida privada, no tempo de Jivago, era ser reaccionário, pequeno-burguês, vazio. A Revolução estava nas ruas das cidades, nas florestas, nos campos. Hoje não há Revolução (apesar de muitos a quererem, mas de preferência sentados no sofá). Pensar, hoje, o privado da vida, também não é muito bem visto. Parece que a consciência só pode ser política, de preferência em redes sociais, ou na rua, durante umas horitas, a gritar slogans giros e depois vai tudo ou beber uma cerveja ou outra coisa qualquer num desses lugares de moda. E, enquanto isso, actualiza-se o perfil e tal, com fotografias todas iguais porque toda a gente utiliza os mesmos filtros, pois tem que se dar um ar vintage à coisa.

4 comentários:

hmbf disse...

Discordo. Mas não me apetece desenvolver. Vou só dizer que ontem, enquanto vinha do trabalho, por volta das 23h45m, numa rua onde passo todos os dias observei um ajuntamento de pessoas. Parei para ver. Uma carrinha distribuía alimentos por uma centena de pessoas. Digo uma centena para não exagerar. E no chão estava um amontoado de trapos (roupas usadas?) que as mesmas pessoas a quem eram distribuídos alimentos escolhiam. Em Caldas da Rainha. Ontem. Séc. XXI. Alguém não ficou sentado no sofá a pensar a vida privada.

manuel a. domingos disse...

Entendo e concordo com o que dizes: "Alguém não ficou sentado no sofá a pensar a vida privada".

Apenas queria realçar o facto de hoje se poder correr o risco de ser criticado pelo facto de se pensar a vida privada. O social, salvo raras excepções (como aquela que mencionas), está inquinado pelo fazer-bonito, que se resume, muitas das vezes, a uma pseudo-esquerda intelectual, que vem directamente da classe média alta.

Mas talvez esteja a ver isto tudo mal. É uma possibilidade.

hmbf disse...

Não penso que exista uma crítica sobre essa atitude de pensar a vida privada, o que observo é um desaparecimento paulatino da vida privada. Menos do que pensá-la, as pessoas expõe-na. Redes sociais como o Facebook são um exemplo de como o pensamento pode ser esvaziado através de uma exposição acrítica da vida, uma vida, afinal, invariavelmente encenada, filtrada, enquadrada por cenários que o eu julga poderem ser invejáveis pelo outro, aquele que está ausente, mas se pressupõe a observar a nossa vida, a vida que damos a ver. Basta constatar essa mania de fotografar tudo e mais alguma coisa, descarregando essas imagens para quem queira ver. São quase sempre imagens deturpadoras da realidade, que não mostram ou disfarçam as rugas da realidade, os pontos negros, as estrias, a borbulha que cresce na ponta do nariz. Há nisto tudo uma tremenda perversidade, pois esta encenação da beleza é a verdade deformação do mundo. Quanto mais plástico, por assim dizer, mais deformado. E isto não tem nada que ver com lados do pensamento político, pois também este vem desde há muito deixando de ser pensamento para ser apenas pose e encenação. Nem esquerda, nem direita, muito menos pseudo, apenas clubismo acéfalo sem fundamento, sem informação, preguiçoso, sem crítica, sem pensamento, uma espécie de futebolização do sentir político que depois dá no que vemos. Em termos democráticos, abstenção. Em termos desportivos, confrontos no Marquês.

manuel a. domingos disse...

É isso tudo, pá.

Daí eu considerar que pensar a vida privada (à-Jivago) é uma forma de resistência. Era isso que pretendia dizer.