Podes sempre fingir que não vês
nem ouves o céu sulcado de enjoo,
os gritos mortais das crianças
Manuel de Freitas
Enquanto estendo a roupa
que a máquina acabou de lavar, ouço gritos de rapazes e de raparigas, que
passam a toda a velocidade de bicicleta numa das faixas da alameda. Gritam,
riem, falam alto e neles toda a juventude. A verdade é que não me lembro de
andar de bicicleta pela rua a desoras. Sempre fui muito cumpridor. Um dia até
escrevi para o mensário da terra sobre as “crianças” que à noite andavam de
bicicleta, sem qualquer elemento reflector que os identificasse, nem uma luz de
presença. Tive pais que se insurgiram contra mim, pois queriam que eu
mencionasse o nome das “crianças” — pois a minha nunca faria uma coisa dessas —
e o discurso do costume. Mas lá estendi a roupa. Cumpri com as tarefas
domésticas, essa arte tão menosprezada por tantos. É noite. Recolho-me.
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