René Crevel

    
    Eu gostaria de ter um destino de cores sobrepostas e que realmente merecesse ser tomado pelo rei das surpresas horizontais. As minhas horas seriam pois cortadas em minutos, e fariam no seu conjunto lembrar o das camadas geológicas.
    Trajo de tempo, trajo de espaço, que a minha vida vá portanto desde o azul-rei até ao roxo-bispo, desde o roxo-bispo até ao vermelho-cardeal, desde o vermelho-cardeal até ao amarelo-canário, desde o amarelo-canário até ao verde-esmeralda; e graças às canções paralelas vá até à infusão de erva, de pedra, de gelo, de céu, que oculte a presença da montanha e se afirme à maneira do quente e do frio.
    Criará um mundo? Fecho os olhos para acreditar que fogem grandes nuvens brancas dos corpos mais amados e almas eflorescem, enfim, em peremptórias lentidões. Mas porquê esta vontade súbita de luta? Estas canduras que mal são tangentes e se chocam, se penetram, e são por cada embate dolorosamente deformadas. O pugilato das almas vai misturar ódios e desejos, as verdades que nos envergonham, as que nos inspiram pudor como no outro pugilato os músculos, o suor, o sangue, as coxas, os bícepes e as apaixonadas cóleras das peles onde o mais fino véu de penugem mostra que são estranhas umas às outras.
    Nascerá a felicidade dos golpes desferidos ou dos golpes recebidos, e a infelicidade dos que não foram desferidos, dos que não foram recebidos? Estranha pergunta para fazermos a nós próprios com as pálpebras fechadas, quando viemos pedir a mais íntima e solitária das metamorfoses ao sol de Junho, ao ar dos glaciares. Ai de mim! Um corpo exige sete anos para se renovar. A montanha, essa, muda insensivelmente de cor. Mas de que valem os símbolos de um alpinismo primário e reconfortante se esta noite não vou chegar ao azul, a esse azul muito a propósito chamado azul-celeste?


em O meu corpo e eu, tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 1ª edição 2014, , pp. 31-32. 

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