Discos pedidos (136)




you've driven these streets a thousand times and all they offer is their exhaustion
The Golden Palominos


Acordas antes do despertador. Abres os olhos. O quarto. A escuridão. O despertador toca. Levantas-te, habituas os pés ao chão. Caminhas. Passos curtos. Tens cuidado para não bateres em nenhuma esquina dos poucos móveis que ocupam o pequeno quarto a trezentos euros o mês mais serventia de cozinha e uma casa-de-banho para mais três pessoas com quem divides o resto do apartamento. Abres devagar a persiana. Os olhos habituam-se à luz. Pegas na toalha de banho do estendal e rumas até à casa-de-banho, antes que alguém se antecipe e fiques sem o necessário e imperativo duche. Ao menos a água sai sempre quente e com a pressão desejada. Ao menos isso. Sabe bem sentir o corpo a acordar. Desta vez não foi champô para os olhos. Ao menos isso. Vais para o quarto novamente. Escolhes a roupa que vais vestir e que, pensas, irá ajudar contra as camelices do mundo, roupa boa para vestir o “bom dia” que nunca ouviste na rua. Bebes a tua dose de coragem líquida e comes duas fatias de pão com cereais xpto e promessas de fibra suficiente para regular o trânsito intestinal. Lavas os dentes. Não esqueces as lentes de contacto. No elevador marcas o zero, mas também podias marcar ou o menos um ou o menos dois. É como te sentes: abaixo de. Mas lá continuas e sais à rua. Há um ar fresco que vai ao encontro da tua cara e das tuas mãos. Colocas os óculos de sol, pois, aprendeste, o inferno são os outros. No café do costume bebes a segunda dose de coragem líquida. Aqui, pensas, dizem — bom dia! e sai uma bica! — pois já te conhecem. E lá tens que seguir o teu caminho. Caminhas lentamente. Não tens pressa, ou já não te importas com o facto de poderes chegar atrasado. Pelo caminho há pais que entregam os filhos no colégio. Apitam, aceleram em seco. Estão sempre com pressa. Estão sempre atrasados. Pontualidade, pensas, não é para gente “rica”. Chegas à tua escola. Um dos teus alunos, que nunca te cumprimenta, pergunta — vamos ter aula consigo, né, stôr? — quando sabe perfeitamente que sim, pois raramente falta. Reparas, depois, que tem um cigarro na mão e fuma à homem e quer que o vejas fumar à homem. Entras na escola e há uma fight algures, que rapidamente chega ao local onde te encontras. O barulho é ensurdecedor. Tentas respirar fundo. É então que reparas: estás a respirar fundo desde o momento que saíste do quarto. Respiras fundo. Respira fundo. É apenas mais um dia.

2 comentários:

bea disse...

Bem descrito este acordar acabrunhado.

Inês G. disse...

Lembrou-me o tema de Throbbing Gristle - Almost A Kiss. Os quase, sempre os quase. E o Inferno são os outros. A serem quase. E os dias quase cinzentos. E os putos quase adultos em corpo pequeno. E os dias quase dias. E o inferno somos nós. A querer quase tudo.

Resiste Manuel. Que a espinha nunca se nos vergue.

Inês G.