you've driven these streets a thousand times and all they offer is their exhaustion
The Golden Palominos
Acordas antes do
despertador. Abres os olhos. O quarto. A escuridão. O despertador toca.
Levantas-te, habituas os pés ao chão. Caminhas. Passos curtos. Tens cuidado
para não bateres em nenhuma esquina dos poucos móveis que ocupam o pequeno
quarto a trezentos euros o mês mais serventia de cozinha e uma casa-de-banho
para mais três pessoas com quem divides o resto do apartamento. Abres devagar a
persiana. Os olhos habituam-se à luz. Pegas na toalha de banho do estendal e
rumas até à casa-de-banho, antes que alguém se antecipe e fiques sem o
necessário e imperativo duche. Ao menos a água sai sempre quente e com a
pressão desejada. Ao menos isso. Sabe bem sentir o corpo a acordar. Desta vez
não foi champô para os olhos. Ao menos isso. Vais para o quarto novamente.
Escolhes a roupa que vais vestir e que, pensas, irá ajudar contra as camelices
do mundo, roupa boa para vestir o “bom dia” que nunca ouviste na rua. Bebes a
tua dose de coragem líquida e comes duas fatias de pão com cereais xpto e
promessas de fibra suficiente para regular o trânsito intestinal. Lavas os
dentes. Não esqueces as lentes de contacto. No elevador marcas o zero, mas
também podias marcar ou o menos um ou o menos dois. É como te sentes: abaixo
de. Mas lá continuas e sais à rua. Há um ar fresco que vai ao encontro da tua
cara e das tuas mãos. Colocas os óculos de sol, pois, aprendeste, o inferno são
os outros. No café do costume bebes a segunda dose de coragem líquida. Aqui,
pensas, dizem — bom dia! e sai uma bica! — pois já te conhecem. E lá tens que
seguir o teu caminho. Caminhas lentamente. Não tens pressa, ou já não te
importas com o facto de poderes chegar atrasado. Pelo caminho há pais que
entregam os filhos no colégio. Apitam, aceleram em seco. Estão sempre com
pressa. Estão sempre atrasados. Pontualidade, pensas, não é para gente “rica”.
Chegas à tua escola. Um dos teus alunos, que nunca te cumprimenta, pergunta —
vamos ter aula consigo, né, stôr? — quando sabe perfeitamente que sim, pois
raramente falta. Reparas, depois, que tem um cigarro na mão e fuma à homem e quer que o vejas fumar à homem. Entras na escola e há uma fight algures, que rapidamente chega ao local onde te encontras. O
barulho é ensurdecedor. Tentas respirar fundo. É então que reparas: estás a
respirar fundo desde o momento que saíste do quarto. Respiras fundo. Respira
fundo. É apenas mais um dia.
2 comentários:
Bem descrito este acordar acabrunhado.
Lembrou-me o tema de Throbbing Gristle - Almost A Kiss. Os quase, sempre os quase. E o Inferno são os outros. A serem quase. E os dias quase cinzentos. E os putos quase adultos em corpo pequeno. E os dias quase dias. E o inferno somos nós. A querer quase tudo.
Resiste Manuel. Que a espinha nunca se nos vergue.
Inês G.
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