— Não existem orientações que nos guiem?
O seu pai estava com um humor inesperadamente
gentil nessa noite, em que a luz nadava num céu sem nuvens sobre as sombras
encardidas da cidade.
— Então ainda acreditas em alguma coisa? —
respondeu com uma voz clara, que ultimamente se tornara mais fraca. — Talvez
acredites na carne e no sangue? Um desprezo completo e ameno em breve também
acabará com isso. Mas, como ainda não o conseguiste, aconselho-te a cultivares
a forma de desprezo a que se dá o nome de comiseração. É talvez menos difícil —
lembra-te sempre que, também tu, se fores alguma coisa, mereces tanta
comiseração como os outros; no entanto nunca deves esperar qualquer comiseração
para contigo.
— Então o que se deve fazer? — perguntou o jovem,
com um suspiro, enquanto olhava o pai, rígido numa cadeira de encosto alto.
— Olha… não faças ruído — foram as últimas palavras
do homem que passara a sua vida a fazer soar uma terrível trompa que enchera
céu e terra de ruínas, enquanto a humanidade prosseguia o seu curso indiferente.
em Vitória, tradução de Jorge Palinhos, Lisboa: Ulisseia, 2014, pp.
172-173.
1 comentário:
uau.
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