Um poema de Anna Akhmátova


Segredos do ofício


1. Trabalho criador


Assim acontece: uma lânguida inquietude;
o relógio não pára de bater nos ouvidos;
ao longe estrondos de trovoada, esmorecidos.
Ouço das obscuras vozes, prisioneiras,
como que as lamentações e os gemidos,
aperta-se um anele secreto, mas já se alteia
neste abismo de murmúrios e de tinidos
um destacado som que a todos suplanta.
Em torno tudo é silêncio tão irreparável
que se ouve a erva nascer na floresta
e o homem com sua trouxa errando pla terra…
E já se enxerga o dia, se vislumbram palavras,
soam longínquos repiques leves de aviso –
e logo dentro de mim tudo se percebe,
e as linhas simples, a todo o seu comprido,
vêm deitar-se na folha virgem da neve.



em Só o Sangue Cheira a Sangue, selecção, tradução, introdução e notas de Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 57.