Um poema de Rosa Maria Martelo


Lírios


Um dia deixarei para sempre o casaco no cabide da entrada
outras mãos que não as minhas haverá para o recolher
outros olhos pelos meus lhe hão-de fitar a ausência.
Depois, nem isso.
Há um momento em que se estende a toalha sobre a mesa dos mortos
como se tivesse sido sempre a mesa dos vivos. Esse dia virá.
Tudo então estará certo e limpo como o esquecimento.
Ou quase assim.


Dispo agora toda esta roupa e escrevo
— sem frio nem perda nem desastre —
a partir desse dia que virá, esse dia depois de mim:


lírios crescem no acaso vivo da relva
uma leve poeira se acrescenta ao ar que não respiro.



em Matéria, Lisboa: Averno, 2014, p. 39.